Mentiras e universidades
Ana Vieira
"Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo
quanto aprendemos".
Entre os muitos escritores e pensadores que o caminho da
história esquece, há alguns que, de repente, voltam com força ao nosso
pensamento. Ellen Key, a autora da frase que serve de inspiração a este texto,
nasceu e viveu na Suécia, na segunda metade do século XIX. Feminista nos tempos
em que era preciso ainda lutar por igualdade de sufrágio, Ellen tem importantes
textos sobre educação, a liberdade pessoal e o desenvolvimento independente do indivíduo.
E por que Ellen Key a essa hora do dia? Porque a cada vez que
se evidencia a falha colossal e coletiva dos nossos sistemas escolares eu corro
a ler alguma coisa que me alivie. Dias como estes, em que lemos estarrecidos as
notícias sobre a última festa do curso de Medicina da Unesp de Botucatu. As
denúncias de abusos e arbitrariedades na recepção aos calouros viraram rotina,
em tudo quanto é universidade. As apurações idem. E a defesa também.
Desta vez, acusam-se os alunos do 6º ano de escolherem recepcionar
seus novos colegas vestidos a la Ku Klux Klan. As fotos circulam, e os alunos
defendem-se, dizendo que é um erro de interpretação e que não houve preconceito
nem intenção de denegrir ninguém. No fundo, não importa muito o que digam,
porque as fotos falam por si, contra fatos não há argumentos. A referência a
certos personagens está ali, presente, tenha ela sido explicitada com todas as
letras ou não, tenha havido ou não consciência por parte de quem usou as
fantasias e segurou as tochas. Além do que, como nos ensina a análise do
discurso, o fato de se recepcionarem novos integrantes de um curso com uma
festa sob o tema "Carrasco" já devia ser suficiente. Tanto os fatos
quanto a sua defesa, como se pudessem ser defensáveis, é de espantar. Um pedido
de desculpas, geral e irrestrito, seria mais pertinente. Até porque erros fazem
parte e o duro é quando não se reconhecem - e, sobretudo, reparam.
Agora, aqui para nós que nem na festa estávamos.
Surpreendente mesmo é pensar que esses jovens passaram no mínimo 18 anos
sentados em bancos escolares. Foram alfabetizados. Leram. Tiveram horas e horas
de aulas de História. Produziram textos, e muito provavelmente algum sobre
racismo, sobre preconceito, sobre violência. Prepararam-se para apresentar as
suas ideias e justificá-las. Muitos deles possivelmente estudaram em escolas
com a preocupação de formar "cidadãos críticos e atuantes". Passaram
numa das mais difíceis seleções universitárias do país. Estudaram por já seis
anos para se tornarem médicos, e é capaz que, em assustador pouco tempo, muitos
de nós depositemos neles confiança, esperança e a própria vida.
Enquanto isso, a sua percepção de acolhimento e diversão é o
reencenar um dos mais macabros momentos da história mundial. Não sabiam disso?
Não conseguiram ver a similaridade entre as suas fantasias e aquela dos que
perseguiam, queimavam e enforcavam negros americanos até há bem pouco tempo?
Como assim?! É essa a capacidade que têm de olhar em volta, ler a realidade e
propor movimento e interferência?
O trote repete-se ano a ano. Choram-se ano a ano os que
morrem, lamentam-se ano a ano os que são assediados e violentados, repudiam-se
ano a ano os estupros. E relativiza-se tudo, porque tudo isso são
"excessos apenas". Os movimentos para conter essa onda que se
aproxima da barbárie são mínimos. Porque atitudes enérgicas são impopulares, e
de três opções, duas são mais fáceis: ou se culpam professores do ensino
básico, famílias desestruturadas e esse longo etc. que pertence ao passado, ou
se encolhem os ombros e se pensa que "no meu tempo também era assim e eu
sobrevivi...".
Uma universidade não é um lugar qualquer. "A história
das universidades", diz Otto Maria Carpeaux em um de seus bonitos ensaios,
"é a história espiritual das nações". Parece que nos esquecemos,
absortos que estamos em decidir se universidades são lugares onde o
conhecimento se transmite ou se pesquisa. Deixamos o barco à deriva,
esquecendo-nos da responsabilidade que ultrapassa os nossos pequenos gabinetes.
E o resultado, a cada trote, nos atropela.
Considerações minhas:
Detesto trote, é infantil e desrespeitoso!
Entrei em quatro Universidades (UNIP -Tatuí-SP (desenho geométrico e descritivo), USP São Carlos-SP (engenharia), UFMS Três Lagoas-MS (matemática) e UNESP Ilha Solteira-SP (engenharia elétrica)e nunca tive trote e nunca participei de nenhum. Fui professor da Unesp-engenharia e sempre fui e sempre serei contra trote. Comungo a mesma ideia da Ana Vieira e indignação contra qualquer tipo de trote.
Daqui uns dias você vai estar sobre uma mesa operatória à mercê
e nas mãos de um idiota destes, quiça de um que passou o curso todo passando com média 5 (cinco), quer dizer, meio médico, com o saber de 50% do conteúdo . Sabe, questionem sobre a média de aprovação destas universidades estaduais, principalmente...
Foz do Iguaçu, 05/04/2015
Publicado no www.nelmite.blogspot.com em 05/04/2015
Publicado no Recanto das Letras em 05/04/2015
http://www.recantodasletras.com.br/autores/noslen ariexiet
Outros autores também no Recanto com outros textos:
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